quinta-feira, 15 de novembro de 2018

Lições do caminho


Essa é uma história verídica, que eu não consigo florear.
Há cerca de um ano e meio, eu passava por um dos piores momentos de minha vida. Na fase de adaptação ao hormônio sintético da tireoide e lidando com os efeitos de uma medicação horrorosa, eu fazia o impossível para manter a rotina dos meninos e desempenhar um bom trabalho no tribunal.
Nesse dia eu estava tão visivelmente mal, que fui abordada por um senhor na rua, oferecendo ajuda. Agradeci e entrei na escola de judô. Precisava ir para casa descansar, mas resolvi fazer mais um esforço e assistir à aula, junto às várias outras pessoas que acompanhavam os seus.
Eis que uma total desconhecida me questionou sobre religião. Ouvindo que me considero espírita apesar de ter crescido no catolicismo, ela começou a desfiar os defeitos da primeira e as perfeições da segunda (sua escolhida, claro). Tentei estabelecer um diálogo, mas como não foi possível, fiquei quieta e me recolhi. Não precisava me enfiar num embate do tipo; cada um com sua crença.
Aula finalizada, meus meninos chegaram com um abraço. A mulher, em alto e bom som, na frente de tantas pessoas, bradou: “Nossa, mas você tem três meninos tão lindos! Você tem que levá-los para a igreja. Você precisa ser uma boa mãe! Volte, volte para sua família. Você precisa voltar para sua família.” Atônita, apenas respondi que ela não pode falar do que não conhece e saí, custando a acreditar no que via. 
Coloquei os meninos no carro e voltei pra falar rapidamente com o professor sobre um agressor contumaz, que nunca era repreendido adequadamente. Mais estresse. Na saída, a surpresa. A mulher levantou-se e me perseguiu, gritando aquelas palavras até chegar no carro. Pedia perdão, pedia desculpa, mas não deixava de me atormentar. Não satisfeita após o fechamento da porta, insistiu com o rosto colado na janela. Meninos chocados no banco de trás. 
Minhas palavras diante de tanta insensatez foram: “Você não me conhece, não sabe nada do que eu estou passando, muito menos a mãe que sou. Se fosse uma cristã de verdade, me respeitaria e não faria o que está fazendo. Isso não é ser cristão. Vá você confessar para o seu padre esse absurdo e rezar suas mil orações; me deixe em paz. E saia daí, se não eu vou te atropelar.” 
Arranquei com o carro, os meninos chorando de tão assustados, minhas pernas tremendo. Eu, que já não sou uma motorista espetacular, segui como conseguia, explicando para os meninos o que tinha acontecido. O pouco equilíbrio que me restou após a cirurgia já tinha ido embora, e eu tirei forças não sei de onde.
Após esse enorme transtorno, foi possível chegar em casa e desabar? Claro que não. Entre as náuseas e os devaneios que o remédio me trazia, eu tinha que dar o almoço, preparar o lanche, arrumar as crianças para a escola e me vestir para o trabalho. 
E a vida seguiu, não sem me mostrar que aquela mulher, a quem nem consigo atribuir a qualidade de louca varrida, é a personificação de muitos fanáticos que nos rodeiam. Fanáticos por qualquer religião, pelo estilo de vida saudável, pela filosofia de como criar os filhos, pela ideologia política, que se consideram superiores a ponto de te ensinar o que é melhor para você.
Vou dizer o que tenho aprendido.
Essas pessoas não querem conversar para entender a fundo o que você passa. Não fazem um esforço para perceber que a receita milagrosa e a reportagem sobre como se livrar de um futuro câncer te fazem sofrer, já que não se preocupam se você enxerga isso como a culpabilização do doente. Pouco se importam se seus desabafos em rede social são válvulas de escape para não entrar em medicações cujas reações adversas você conhece muito bem, pois é fácil desmerecer sua linha de raciocínio e pedir para você aprender, ler direitinho, pensar com carinho, ou te acusar de qualquer segmentação da moda.
No fim das contas, tais indivíduos estão se lixando para a sua evolução e para a forma como você enfrenta o SEU problema, que lhe demanda muita luta, energia e autoconhecimento, sendo mal compreendido até por quem compartilha sua intimidade. 
Da mesma forma que aquela senhora me abordou tempos atrás, pessoas que agem assim apenas querem se sentir bem. Como elas se sentem bem? Fingindo que você não tem nada ou não aceitando de coração as consequências do que você tem. Abusando do direito de aconselhar, na tentativa de fazer prevalecer sua fé, tolhendo o direito do outro de se dirigir conforme suas próprias crenças. Te trazendo mais peso, mais desequilíbrio e mais caraminhola para colocar na cabeça, insistindo na receita para resolver o seu problema. Te tirando a paz que você tanto almeja, mas custa a segurar por alguns minutos.
A ajuda verdadeira não se impõe para acalentar a alma do ajudante. Ela se curva ao necessitado para oferecer o que ele consegue receber, mesmo que o iluminado auxiliar acredite que tudo está sendo feito errado. Ninguém é dono da verdade nem mensageiro de nada, a não ser das próprias experiências. E onde não se pode socorrer com compaixão, não se deve permanecer por muito tempo. 
Aquela mulher eu nunca mais vi, e tenho certeza que o favor que ela me fez é bem diferente do ensinamento que ela pretendia me dar.
Essa é apenas uma das tantas histórias e lições aprendidas, que eu faço questão de guardar na bagagem enquanto marcho rumo à libertação. As memórias ficam para me lembrar onde eu não preciso mais pisar e do que eu tenho que me proteger. E eu vou seguir o meu caminho. Quem entender, bem; quem não entender, melhor ainda.

3 de março de 2017

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