E lá está
Amora, totalmente afônica, esperando sua vez no salão de beleza. Revista
na mão, mal vê a hora de sair daquele lugar.
No dia anterior,
havia se submetido ao torturante encontro com a manicure e pedicure. Sessão solene,
que ocorre apenas em função de eventos especiais e irrecusáveis, pois ela nunca
firmou compromisso semanal para tirada de cutícula acompanhada das últimas
fofocas. Uau, já faz dois anos... Epa, esmalte vermelho e berrante, nem pensar! Ela tem seu kit caseiro básico, utilizado em momentos de necessidade (ou quando
vem um raríssimo desejo).
Logo nos
cumprimentos, avisa que está com uma laringite da braba, na esperança de que
não seja submetida ao interrogatório feito pela profissional já íntima e
curiosa pelas novidades. Mas não, parece que esses colunistas verbais vivem de
notícias, querem saber da sua vida a qualquer custo. Na tentativa de
ser simpática, a cliente se esforça para responder com sofridos sussurros.
Finalmente a
cabeleireira religiosa desiste do diálogo truncado e passa a pregar para as
colegas de trabalho, deixando a mulher livre com seus pensamentos. Ah, mas que
pensamentos... Nas sacudidas durante a eterna lavagem dos cabelos, impossível
não relembrar os traumas pelos quais passou desde o início da adolescência.
A primeira (e
última) visita à depiladora. Terrível a lembrança daquela posição ingrata,
deitada na cama de frente e de costas, com as pernas abertas e partes íntimas quase tocadas por uma
estranha que lhe arrancava os pelos. O que era aquilo? Desde
quando alguém tinha que se submeter a tanto constrangimento para ficar com a
pele lisinha? É claro que a tímida moçoila deu seu jeito, e desde então
realiza sozinha sua depilação: lâmina, cera quente ou fria e até o depilador
elétrico (ela reclamou bastante no começo, mas agora é fã).
Qual será o
corte? A ‘colega’ ao lado, com a cabeleira besuntada de tinta, insiste: ‘Você
nunca tingiu? Zenaide, olha que cabelo macio! Qualquer penteado fica bom aí.’
Mas Momora, como é comumente chamada pelos mais próximos, dispensa aquele blá
blá blá e só ouve o sotaque da sua terra... Como é bom esse tom acaipirado!
A iniciação na
retirada da sobrancelha (e despedida também). A mãe carrasca, provocando os
gemidos com a pinça, e o terror diante do espelho: como ela andaria com aquele desenho
fino e certinho acima dos olhos? Prefere sua sobrancelha na espessura
natural, e o máximo que faz é retirar o excesso - quando se lembra,
quando dá vontade.
Quarenta
minutos depois, Amora pensa no tempo perdido naquela cadeira. Quanto mais terá
que aguentar? ‘Quer que eu coloque o
cabelo no lugar?’ Hã? Não sabe o que isso significa, mas libera a coiffeur para finalizar. Tudo para ir
embora - já está com gastura, dá até falta de ar!
Dois acontecimentos
memoráveis por suas conquistas, mas tenebrosos por suas exigências: formatura e
casamento, com os tormentos do cabelo arrumado e da detestada maquiagem. Na
preparação para o último evento, obrigou o maquiador a lavar o seu rosto e
fazer uma montagem mais branda. Ele usou o mínimo que pôde e ela, mesmo assim, não
se enxerga quando vê nas fotos a pintura feita sobre a ‘massa corrida’ passada
em seu rosto (piadinha inventada pelo irmão). A complicada acha que basta uma
maquiagem suave, apenas com batom, lápis fraquinho e rímel transparente. Gosta da beleza natural do dia-a-dia, não a da ilusão que vai embora
quando a cara é lavada.
Oh Senhor, o
puxão da escova! Será que é preciso tanta força? Se quiser descarregar a raiva,
compra um saco de pancada ou vai lutar boxe, praticar muay thai...
Uma hora e meia,
serviço acabado, ela abre o sorriso amarelo e diz que gostou do visual: o
cabelo escorrido, virado para fora, que deixa seu rosto maior e esquisito. É a última
moda, por que não variar as madeixas ligeiramente onduladas? Pelo menos não se
rendeu ao super topete com coque banana desleixado. A assistente aprendeu no
YouTube, tão bem bolado!
E lá se vai
Amora, absorta, a caminho de casa. Recorda os avisos e conselhos ouvidos de
todos os lados: ‘Compra um vestido e umas saias, parece um homem usando só calça!’;
‘Vai passar um batom, seus alunos merecem uma professora mais bem-arrumada!’; ‘Não
admita que seu namorado te impeça de usar frente-única, decote ou minissaia!’, ‘Ouça
sua avó, a obrigação da mulher é estar limpinha e cheirosa quando o marido
chega!’; ‘Marca um horário com a Tônia, ela faz sua unha rapidinho!’, ‘Vá tomar
um solzinho, parece leite condensado!’
Tanta insistência e incompreensão, nem as famosas merecem... Até parece que é crime sair na rua de cara limpa e sem estar periquitada!
Morinha (que delicada) veste calça porque se sente mais à vontade, não troca o conforto pela dor e boniteza do salto alto, descarta roupas curtas e decotadas porque detesta mostrar o corpo, se satisfaz com as unhas bem aparadas, odeia marcas
de biquíni (prefere morrer branquela a ser bicolor), recebe o marido no estado
em que as circunstâncias permitem, não dá a mínima para qualquer tendência da
moda.
A dama tem seu estilo peculiar, sabe o que é saudável e quer cuidar do
corpo, mas jamais se renderá à ditadura da beleza e à rotina do salão. Até gostaria de fazer amizade com a manicure, eleger o cabeleireiro favorito e fazer a
depiladora de confidente; são pessoas dedicadas, divertidas, que passam energia
positiva e elevam a autoestima da mulherada. Mas não coloca culpa na falta de
tempo, tampouco no excesso de atribuições... É que ela pulou a fila da vaidade
física, portanto fica impossível ser feminina demais nessa vida.
Parece que
será sempre assim, a difícil tarefa de se embelezar e vestir trajes de festa, as questões que nunca vão embora: Por quê?
Para quê? Quem foi a/o maldita/o que inventou tanta frescura? Sem lamúrias, pois
hoje não tem para onde correr... E daqui a seis meses, outro casório – quase tudo
de novo!
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Rumo à festa,
Amora ouve: ‘Mãe, que cabelo é esse? Tira esse esmalte... Minha tia usa, toda
mulher usa, mas você não!’
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Fofoca: tenho que contar que o esposo de Momô (que dengo), para tristeza de alguns, concorda inteiramente com ela e também não gosta de unhas pintadas, cara borrada (palavras dele) e vestimentas sofisticadas. Como pode elogiar alguém que está de jeans e camiseta, com o cabelo desgrenhado?!