Quando a
mamãe chamou a gente no quarto para explicar os motivos de tanto
tempo na frente do computador e ao telefone, e das nossas muitas
visitas a médicos e laboratórios, eu entendi tudinho. Era como no
Star Wars, os carocinhos estavam atacando a tireoide, e o médico ia
ter que abrir para ajudar a acabar com todos eles.
Claro
que eu ouvi algumas conversas e fiquei empolgado quando ela confirmou
o que tinha, porque sempre coloco uma moedinha para as crianças com
câncer no McDonald´s. Aprendi que todo mundo fica doente e cada um
vem com um probleminha pra resolver - eu tenho rinite, meu irmão
sinusite, o papai dor nas costas, outros têm dificuldade com as
perninhas ou não enxergam bem, e isso é o que veio pra ela.
Festejamos
a formatura da alfabetização e o aniversário, curtimos os
priminhos, e logo tudo mudou. Vovó ficou um tempão aqui, e minha
tia veio no dia da cirurgia, para ajudar a cuidar de mim. Mamãe
voltou do hospital, e todo dia eu perguntava se já ia 'fazer' a
cicatriz. Quando vi, parecia um risco de canetinha, que não podia
tomar sol.
Contei
que a professora pediu para desenhar o que me deixa mais
feliz e triste, e eu fiz a mamãe na cama do hospital, pois é ruim
quando ela fica mais de um dia longe. Ela não se importou de eu ter
esquecido o que fiz para o que me alegra e, com os olhos marejados,
deu um sorriso e disse que o trabalho deve ter ficado muito bonito.
Dois
meses depois, a mamãe precisou ir ao hospital para tomar um
remedinho especial, chamado iodo radioativo, que serve para a pessoa ficar curada. Ele é como kriptonita, vem num pacote fechadinho e
faz mal pra quem não está doente, então ela precisaria se isolar
por alguns dias. Seria legal, eu ficaria na pousada com o papai, uma
aventura de meninos.
Cheguei
da escola e a mamãe tinha deixado uma surpresa, a Charada Premiada!
Eram potes com uma questão e um recadinho para cada dia que ela não
estaria conosco; bastava dar um palpite para ver a resposta e receber
o prêmio, quase sempre uma
guloseima. O papai filmou
tudo pra mamãe ver como foi legal, e eu disse que
ela é tão criativa, que até quando vai para o hospital, pensa em
coisa divertida. Ah, desenhei
uma árvore de presente e pedi para o meu pai imprimir.
Toda
manhã ela ligava, a gente conversava um pouquinho e eu falava
"Mamãe, eu tô com muita saudade com
você!". Era choro na hora da charada, para falar ao telefone,
ao chegar da escola, na hora de dormir. Quando eu caí e
machuquei, meu pai me
pegou no colo, mas eu só chamava a minha mãe... E ela não estava
em casa para ver que o médico costurou minha cabeça e ouvir que eu
fui valente, nem chorei.
Por
causa do ataque de uma bactéria, a mamãe retornou ao hospital e nós
voltamos logo para casa. Assim que ela pôde receber visitas, eu saí
da escola e fui para o hospital; era melhor estar com ela numa sala
pequena, sem fazer muito barulho, do que ficar no plantão de estudos
e no judô, que eu adoro.
Entrei
e achei tudo meio esquisito; mamãe sentou-se ao meu lado e me
encolhi no sofá, olhando de rabo de olho. Logo ela segurou minha
mão, disse que eu estava parecendo um tatu, pegou o trim e começou
a cortar minhas unhas; daí fui chegando perto, porque com aquilo eu
estava acostumado. No segundo dia, pedi para deitar na cama com ela,
abracei, suspirei de felicidade e, pronto, começou a disputa e tive
que revezar com meus irmãos.
Perguntei
se tinham furado o braço para colocar aquela mangueirinha que leva o
remédio, e ela disse que quem tem três filhos é especial e não
precisa de agulha. Eles usaram a mesma canetinha mágica que eu tenho
para medir o açúcar do sangue, e aquele vermelho era uma tinta
colorida, para mostrar se estava funcionando. A enfermeira entrou e
eu vi que era verdade, a seringa com soro encaixou igual ao Lego!
Eu
apertava o botão da cama que o Batman tinha deixado e comia a janta
que o papai comprava lá no quarto mesmo. Era uma delícia saborear o
pão com manteiga do lanche da noite, a gelatina, o iogurte e o
biscoito que a copeira levava pra mim. Na hora de ir embora, eu
ficava triste e chorava, porque a mamãe não podia ficar sozinha...
Quando
fomos almoçar no restaurante ao lado do hospital, o papai falou para
eu olhar lá em cima, na passarela de vidro, e contar até cem; as
moças da fila cochichavam que aquilo era um absurdo. Logo a mamãe
apareceu e acenou, e eu gritei, contente, tão alto que ela conseguiu
ouvir. Foram apenas dois minutinhos, mas ela viu que eu usava, para o
dia do brinquedo, a luva de médico que ela deu. Ela não entendeu
por que aquelas mulheres acenavam, e depois o papai explicou que elas
ficaram comovidas.
No
sábado, a mamãe foi para casa com a gente, só que ainda não tinha
sarado e não podia fazer muita coisa. Contrariando suas
expectativas, o primeiro destino foi o salão de beleza... Também,
pudera, eu sabia que o papai não é tão bom cabeleireiro assim! Ela
disse que ele cortou seus cabelos numa emergência, para facilitar
nos cuidados, e fiquei tranquilo quando ouvi que ia crescer de novo,
porque eu acho comprido mais bonito.
Quando
mamãe veio me dar o abraço e o beijo de bom dia, eu não deixei e
agarrei a perna do meu pai, espantado. Ela falou que
entendia e explicou que o cabelo estava diferente e a faixa no
pescoço ficaria por um tempo, mas ela era a mesma. Na visão dela,
não era daquela mãe que eu sentia saudade, mas em cerca de trinta
minutos eu me aproximei e ganhei um abraço gostoso.
Durante
quinze dias, foi um bombardeio: "Quanto tempo vai demorar para
sarar o seu pescoço?; Tem alguém com mão de robô na sua família?;
Eu quero que você me ajude, não quero que você fique doente! Por
que você não sara?"
No
restaurante, a mamãe deu as razões de usar o cachecol por cima da
faixa, e eu concluí que era para as crianças não se assustarem,
pensando que ela era a mulher do Frankenstein! Sabe, aquela que tem
um corte no pescoço assim... Ela concordou e riu, porque tinha
lembrado somente do Pepe Legal e da Penélope Charmosa.
Engraçado,
uma vez eu pedi uma babá, já que meus amigos tinham, e a mamãe
disse que não precisava, porque ela ficava comigo. De repente, ela
estava em casa, mas era a ajudante quem cuidava de mim. E quando a
Maria me acompanhou até a quadra, eu fiz questão de dizer para as
pessoas que aquela não era minha mãe; eu vibro quando ela falta,
porque tenho muita vergonha.
Assim
que a mamãe contou que teria que fazer uma nova cirurgia, eu caí
num choro profundo... Mas quer saber, foram dois dias muito legais, o
melhor fim de semana da minha vida! As amigas dela se uniram no
auxílio à nossa família e eu me diverti muito, brinquei nas casas
dos meus amigos e na área de lazer, fui ao zoológico, ao parquinho
e ao shopping. Quem disse que eu queria ir embora quando o papai
chegava? Nem a mamãe eu quis visitar!
Quando
ela voltou, fiquei decepcionado, porque achei que já estaria boa. A
alegria foi grande quando trocou o curativo e ficou igual ao da outra
vez, e vibrei no dia em que não vi mais o micropore, só a cicatriz.
Como
nossa vida ficou diferente e a mamãe está mais quieta, séria e
brava, ela veio esclarecer a situação. Conversamos um pouquinho e
eu, sempre esperto, saquei que ela está doida por causa dos
remédios, por isso fica achando que é o Hulk.
Na minha
pesquisa diária, fui me certificar com o papai se fazer espada do
Star Wars não era perigoso pra mamãe. E fiz uma proposta, já que
ela podia mexer com as mãos, eu poderia ajudá-la a preparar os
sabres de luz que eu tanto queria. Foi um domingo muito legal.
Nós guardamos os planos para quando ela estiver boa de vez, sou bastante criativo e há muito o que não conseguimos fazer juntos. A rotina
está se ajeitando lentamente, e a cada coisa que ela faz por mim, eu
corro radiante e grito para os meus irmãos que a mamãe está
melhorando. Ainda é um pouco difícil e tenho que tirar muitas
dúvidas da minha cabecinha, por isso hoje perguntei assustado se a
pediatra tinha achado algum caroço em mim. A mamãe garantiu que
isso não aparece em crianças, só em mulher mais velha, e eu sorri
aliviado, não preciso me preocupar com isso.
*Texto baseado nos comentários de três pimpolhos valentes e nas respostas para amenizar a realidade imprevista. Com criança o desafio é grande, mas o bálsamo da diversão é garantido.
Cris amo ler tudo o que escreve primeiro pela qualidade literária, com ou sem a inspiração da tireóide...Segundo: já gostava de vcs aqui, depois amei sua família por outras posturas e acontecimentos. Agora sou fã da mulher, Mas, acredite! Vai dar tudo certo! Beijo e Bom Domingo!
ResponderExcluirEstou tentando adivinhar quem escreveu essas palavras tão bonitas... Muito obrigada!
ExcluirCris, muito lindo!! Estamos torcendo por você aqui! Bjos de toda a família!
ResponderExcluirObrigada, Vanessa! Beijos em todos vocês!
ExcluirCris, eu ficava imaginando como vocês estavam lidando com as perguntas, os medos e a mudança na rotina dos três ... agora já sei e não poderia ser diferente, vindo de pessoas tão sensíveis! Adorei o foco narrativo!!!
ResponderExcluirObrigada, Carol! A gente tenta entender o que essas cabecinhas estão pensando, e aos poucos eles vão mostrando como se sentem. bjos
ExcluirCristiane, estou passando pelo mesmo problema, mas tenho 2 criancas! Adoreiiiiiii como você fez e como o lúdico dá um toque especial numa situação dessa. Parabéns!!!!
ResponderExcluirRejania
Obrigada, Rejania. Eu tenho três meninos, de 7, 6 e 3 anos.
ExcluirTudo de bom para você e suas crianças, que essa fase passe logo! Abraços
Simplesmente Maravilhoso!!! !!!
ResponderExcluirObrigada, Farza! Beijos
Excluirpai não permitas que nada neste mundo me impeça de ver o sofrimento do meu próximo e fazer-me solidário com ele amém!
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