sábado, 5 de abril de 2014

Uma história em aberto (o lúdico no desafio em família)

     Quando a mamãe chamou a gente no quarto para explicar os motivos de tanto tempo na frente do computador e ao telefone, e das nossas muitas visitas a médicos e laboratórios, eu entendi tudinho. Era como no Star Wars, os carocinhos estavam atacando a tireoide, e o médico ia ter que abrir para ajudar a acabar com todos eles.
     Claro que eu ouvi algumas conversas e fiquei empolgado quando ela confirmou o que tinha, porque sempre coloco uma moedinha para as crianças com câncer no McDonald´s. Aprendi que todo mundo fica doente e cada um vem com um probleminha pra resolver - eu tenho rinite, meu irmão sinusite, o papai dor nas costas, outros têm dificuldade com as perninhas ou não enxergam bem, e isso é o que veio pra ela.
     Festejamos a formatura da alfabetização e o aniversário, curtimos os priminhos, e logo tudo mudou. Vovó ficou um tempão aqui, e minha tia veio no dia da cirurgia, para ajudar a cuidar de mim. Mamãe voltou do hospital, e todo dia eu perguntava se já ia 'fazer' a cicatriz. Quando vi, parecia um risco de canetinha, que não podia tomar sol.
     Contei que a professora pediu para desenhar o que me deixa mais feliz e triste, e eu fiz a mamãe na cama do hospital, pois é ruim quando ela fica mais de um dia longe. Ela não se importou de eu ter esquecido o que fiz para o que me alegra e, com os olhos marejados, deu um sorriso e disse que o trabalho deve ter ficado muito bonito.
    Dois meses depois, a mamãe precisou ir ao hospital para tomar um remedinho especial, chamado iodo radioativo, que serve para a pessoa ficar curada. Ele é como kriptonita, vem num pacote fechadinho e faz mal pra quem não está doente, então ela precisaria se isolar por alguns dias. Seria legal, eu ficaria na pousada com o papai, uma aventura de meninos.
     Cheguei da escola e a mamãe tinha deixado uma surpresa, a Charada Premiada! Eram potes com uma questão e um recadinho para cada dia que ela não estaria conosco; bastava dar um palpite para ver a resposta e receber o prêmio, quase sempre uma guloseima. O papai filmou tudo pra mamãe ver como foi legal, e eu disse que ela é tão criativa, que até quando vai para o hospital, pensa em coisa divertida. Ah, desenhei uma árvore de presente e pedi para o meu pai imprimir.
     Toda manhã ela ligava, a gente conversava um pouquinho e eu falava "Mamãe, eu tô com muita saudade com você!". Era choro na hora da charada, para falar ao telefone, ao chegar da escola, na hora de dormir. Quando eu caí e machuquei, meu pai me pegou no colo, mas eu só chamava a minha mãe... E ela não estava em casa para ver que o médico costurou minha cabeça e ouvir que eu fui valente, nem chorei.
      Por causa do ataque de uma bactéria, a mamãe retornou ao hospital e nós voltamos logo para casa. Assim que ela pôde receber visitas, eu saí da escola e fui para o hospital; era melhor estar com ela numa sala pequena, sem fazer muito barulho, do que ficar no plantão de estudos e no judô, que eu adoro.
     Entrei e achei tudo meio esquisito; mamãe sentou-se ao meu lado e me encolhi no sofá, olhando de rabo de olho. Logo ela segurou minha mão, disse que eu estava parecendo um tatu, pegou o trim e começou a cortar minhas unhas; daí fui chegando perto, porque com aquilo eu estava acostumado. No segundo dia, pedi para deitar na cama com ela, abracei, suspirei de felicidade e, pronto, começou a disputa e tive que revezar com meus irmãos.
     Perguntei se tinham furado o braço para colocar aquela mangueirinha que leva o remédio, e ela disse que quem tem três filhos é especial e não precisa de agulha. Eles usaram a mesma canetinha mágica que eu tenho para medir o açúcar do sangue, e aquele vermelho era uma tinta colorida, para mostrar se estava funcionando. A enfermeira entrou e eu vi que era verdade, a seringa com soro encaixou igual ao Lego!
      Eu apertava o botão da cama que o Batman tinha deixado e comia a janta que o papai comprava lá no quarto mesmo. Era uma delícia saborear o pão com manteiga do lanche da noite, a gelatina, o iogurte e o biscoito que a copeira levava pra mim. Na hora de ir embora, eu ficava triste e chorava, porque a mamãe não podia ficar sozinha...
     Quando fomos almoçar no restaurante ao lado do hospital, o papai falou para eu olhar lá em cima, na passarela de vidro, e contar até cem; as moças da fila cochichavam que aquilo era um absurdo. Logo a mamãe apareceu e acenou, e eu gritei, contente, tão alto que ela conseguiu ouvir. Foram apenas dois minutinhos, mas ela viu que eu usava, para o dia do brinquedo, a luva de médico que ela deu. Ela não entendeu por que aquelas mulheres acenavam, e depois o papai explicou que elas ficaram comovidas.
      No sábado, a mamãe foi para casa com a gente, só que ainda não tinha sarado e não podia fazer muita coisa. Contrariando suas expectativas, o primeiro destino foi o salão de beleza... Também, pudera, eu sabia que o papai não é tão bom cabeleireiro assim! Ela disse que ele cortou seus cabelos numa emergência, para facilitar nos cuidados, e fiquei tranquilo quando ouvi que ia crescer de novo, porque eu acho comprido mais bonito.
      Quando mamãe veio me dar o abraço e o beijo de bom dia, eu não deixei e agarrei a perna do meu pai, espantado. Ela falou que entendia e explicou que o cabelo estava diferente e a faixa no pescoço ficaria por um tempo, mas ela era a mesma. Na visão dela, não era daquela mãe que eu sentia saudade, mas em cerca de trinta minutos eu me aproximei e ganhei um abraço gostoso.
      Durante quinze dias, foi um bombardeio: "Quanto tempo vai demorar para sarar o seu pescoço?; Tem alguém com mão de robô na sua família?; Eu quero que você me ajude, não quero que você fique doente! Por que você não sara?"
        No restaurante, a mamãe deu as razões de usar o cachecol por cima da faixa, e eu concluí que era para as crianças não se assustarem, pensando que ela era a mulher do Frankenstein! Sabe, aquela que tem um corte no pescoço assim... Ela concordou e riu, porque tinha lembrado somente do Pepe Legal e da Penélope Charmosa.
      Engraçado, uma vez eu pedi uma babá, já que meus amigos tinham, e a mamãe disse que não precisava, porque ela ficava comigo. De repente, ela estava em casa, mas era a ajudante quem cuidava de mim. E quando a Maria me acompanhou até a quadra, eu fiz questão de dizer para as pessoas que aquela não era minha mãe; eu vibro quando ela falta, porque tenho muita vergonha.
       Assim que a mamãe contou que teria que fazer uma nova cirurgia, eu caí num choro profundo... Mas quer saber, foram dois dias muito legais, o melhor fim de semana da minha vida! As amigas dela se uniram no auxílio à nossa família e eu me diverti muito, brinquei nas casas dos meus amigos e na área de lazer, fui ao zoológico, ao parquinho e ao shopping. Quem disse que eu queria ir embora quando o papai chegava? Nem a mamãe eu quis visitar!
      Quando ela voltou, fiquei decepcionado, porque achei que já estaria boa. A alegria foi grande quando trocou o curativo e ficou igual ao da outra vez, e vibrei no dia em que não vi mais o micropore, só a cicatriz. 
      Como nossa vida ficou diferente e a mamãe está mais quieta, séria e brava, ela veio esclarecer a situação. Conversamos um pouquinho e eu, sempre esperto, saquei que ela está doida por causa dos remédios, por isso fica achando que é o Hulk.
      Na minha pesquisa diária, fui me certificar com o papai se fazer espada do Star Wars não era perigoso pra mamãe. E fiz uma proposta, já que ela podia mexer com as mãos, eu poderia ajudá-la a preparar os sabres de luz que eu tanto queria. Foi um domingo muito legal.
        Nós guardamos os planos para quando ela estiver boa de vez, sou bastante criativo e há muito o que não conseguimos fazer juntos. A rotina está se ajeitando lentamente, e a cada coisa que ela faz por mim, eu corro radiante e grito para os meus irmãos que a mamãe está melhorando. Ainda é um pouco difícil e tenho que tirar muitas dúvidas da minha cabecinha, por isso hoje perguntei assustado se a pediatra tinha achado algum caroço em mim. A mamãe garantiu que isso não aparece em crianças, só em mulher mais velha, e eu sorri aliviado, não preciso me preocupar com isso.
     


*Texto baseado nos comentários de três pimpolhos valentes e nas respostas para amenizar a realidade imprevista. Com criança o desafio é grande, mas o bálsamo da diversão é garantido.



11 comentários:

  1. Cris amo ler tudo o que escreve primeiro pela qualidade literária, com ou sem a inspiração da tireóide...Segundo: já gostava de vcs aqui, depois amei sua família por outras posturas e acontecimentos. Agora sou fã da mulher, Mas, acredite! Vai dar tudo certo! Beijo e Bom Domingo!

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    1. Estou tentando adivinhar quem escreveu essas palavras tão bonitas... Muito obrigada!

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  2. Cris, muito lindo!! Estamos torcendo por você aqui! Bjos de toda a família!

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  3. Cris, eu ficava imaginando como vocês estavam lidando com as perguntas, os medos e a mudança na rotina dos três ... agora já sei e não poderia ser diferente, vindo de pessoas tão sensíveis! Adorei o foco narrativo!!!

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    1. Obrigada, Carol! A gente tenta entender o que essas cabecinhas estão pensando, e aos poucos eles vão mostrando como se sentem. bjos

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  4. Cristiane, estou passando pelo mesmo problema, mas tenho 2 criancas! Adoreiiiiiii como você fez e como o lúdico dá um toque especial numa situação dessa. Parabéns!!!!

    Rejania

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    1. Obrigada, Rejania. Eu tenho três meninos, de 7, 6 e 3 anos.
      Tudo de bom para você e suas crianças, que essa fase passe logo! Abraços

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  5. Simplesmente Maravilhoso!!! !!!

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  6. pai não permitas que nada neste mundo me impeça de ver o sofrimento do meu próximo e fazer-me solidário com ele amém!

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