Senta aqui, Maria, precisamos conversar. Percebo que você, apesar de minha insistência, rejeita os sessenta minutos para almoçar e descansar. Como era no outro emprego? Ah, eu podia imaginar: não tinha controle de jornada, não recebia adicional noturno, comia rapidinho e corria para adiantar o serviço. Você não admite um momento de pausa no âmbito do meu lar e fica acanhada com minha oferta de sentar no sofá para ver TV ou ler uma revista nesse período. Já está acostumada com a lida, sempre foi assim, não precisa relaxar um pouco na área de lazer do condomínio. Compreendo o que te incomoda, Maria - sei que essas alternativas são muito diferentes de trabalhar em uma loja e passear pelo centro da cidade na horinha de folga.
Acontece, Maria, que as coisas mudaram, e as domésticas agora têm reconhecidos os direitos essenciais de qualquer trabalhador. Um deles é o intervalo no meio da jornada, do qual você não pode ser privada. Nem adianta querer negociar, dizendo que vai trabalhar por oito horas ininterruptas, tendo chegado aqui depois de duas horas na estrada, para tentar sair mais cedo e pegar o longo caminho de volta com apenas o macarrão instantâneo no estômago. Podendo poupar o que gastaria com a senhora que dela cuida, dinheiro que te faz falta, você decidiu não trazer sua pequena justamente porque sabe o quanto essa rotina é sacrificante, não é mesmo?
Reconheça: como todos os outros que têm horário de almoço, você é gente, Maria, e a gente não consegue viver bem sem uma pausa durante o dia. Sei que você é sofrida, vive para trabalhar e está comigo por falta de opção. Veja-se não apenas como uma empregada, e sim como uma mulher jovem, bonita, que tem um corpo para alimentar, saúde para resguardar, além de uma mente para relaxar. Pois ao contrário do que divulgam, é preciso usar o cérebro na dura rotina de fazer uma casa funcionar.
Você sabe que nunca tive empregada e não fico confortável com diaristas, por vários motivos, certos ou errados, dos quais não consigo me desvencilhar. Sou controladora ao extremo, gosto de fazer tudo sozinha, detesto repetir orientações, acho que os papéis se misturam e que é inconcebível alguém ter a obrigação de guardar os calçados e limpar a sujeira negligenciada de pessoas saudáveis. Mas agora, Maria, eu não posso me esforçar. Você foi contratada para me substituir nas minhas limitações, eu não te cobrarei o que nunca conseguiria fazer em condições normais. Se te confio meus maiores tesouros, os filhos, sei que o resto não ficará impecável, pois só exige isso de uma única pessoa quem nunca cuidou sozinha de crianças em casa, e talvez nem teria ideia de por onde começar.
O mesmo desconforto que você tem ao usufruir seu horário de almoço, Maria, eu sinto ao vê-la se matando de trabalhar em minha casa sem descanso; me faz mal ter a casa mais organizada que o habitual, a esse custo. Eu conheço a dureza, o cansaço, a dor no corpo e o estresse de não ver o trabalho acabado, além da falta de reconhecimento pelo restante da comunidade. Tantas mulheres acreditam que esse serviço não lhes merece e recusam-se a ensiná-lo para a nova geração de meninas descoladas e independentes, que me pergunto: quem pagará por tamanha comodidade, quando você e suas amigas finalmente internalizarem o imenso valor desse trabalho?
Embora eu não considere esse tipo de relação trabalhista agradável, garanto que a nossa será totalmente legal. Você caiu num lar de advogados e não aceito burlar essa lei, que considero tão justa e cujo real significado você em breve irá compreender. Creio que uma prática vale mais que mil bravatas, e que o ideal defendido tem que começar a ser aplicado na menor célula da sociedade sob meu controle, que é a minha casa. Se alguém te fez acreditar que é favor te dar um emprego e adequar seus direitos à planilha familiar de supérfluos e viagens, pasme, você foi vítima de exploração e conveniência travestidas de bondade. Então mesmo que isso pudesse me beneficiar de algum modo, recuso-me a abusar de sua ingenuidade e não abrirei mão do seu intervalo para alimentação e repouso. É seu direito, é lei, é meu dever.
Com tudo explicado, Maria, eu entendo seu lado e não desejo te constranger. Se você declina uma hora de almoço, temos a opção da jornada de seis horas diárias, cinco vezes por semana, com o descanso de quinze minutos. Já te mostrei as diferenças, que eu vivenciei nos tempos de bancária. Repare nas contas, nesse sistema teremos que fazer alguns ajustes e sua hora sairá mais cara, mas não considero justo te pagar menos do que o emprego anterior te dava por quarenta e quatro semanais. Fico feliz que você tenha pensado e escolhido as trinta horas que considera melhor, mas confesso que sofro, Maria, por achar que ainda não a remunero pelo que você merece. Porque se eu fosse cobrar pelo valor que dou ao meu serviço, que temporariamente te delego, poucos teriam condições e vontade de pagar.
Depois dessas semanas de profundas experiências, dedico a você, Maria, e às tantas outras que, na falta do cubículo 'exclusivo', sentam no chão da sala e cobram, por uma noite como babá, menos que a metade da conta do chope do patrão, o esquisito 8 de março. Porque uma premissa de araque do louvável e necessário feminismo não me explica o motivo de uma categoria de mulheres, a sua, poder ficar relegada aos abominados encargos com a casa e a cria. Cuidados com o lar e os filhos alheios, em detrimento dos seus, é claro, para que mulheres mais favorecidas consigam arregaçar as mangas e lutar pela nobre causa.
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