Textão de indignação
Situação hipotética, muito difícil de ocorrer nesse Brasil: descobrem que o prefeito de sua cidade, mancomunado com vereadores, promotores, juízes, está cometendo atos ilícitos, que ensejam pedidos de impeachment, renúncia, investigação, prisão. Mas os camaradas são caras de pau, não largam o osso na política municipal (hipótese absurda, hein gente!).
Organiza-se uma manifestação pacífica, por pessoas que só pra garantir carregam pedra, foice, rojão, bomba. Vai que, né gente. Mas isso não ocorre fora do Planalto Central, que imaginação fértil a minha.
Eu gostaria de saber se os defensores dos "manifestantes" apoiariam e justificariam a tentativa de invadir a prefeitura, a depredação da câmara de vereadores, a jogada de bomba no prédio de uma secretaria qualquer, com os trabalhadores dentro.
Seria interessante ver a reação dos munícipes ao descobrir que aquele é o prédio onde trabalham seus parentes, seus vizinhos, aquela antiga ajudante querida que agora é terceirizada da limpeza.
Coçaria pra testemunhar os defensores da baderna recebendo no whatsapp mensagem do (a) namorado (a), avisando que teve que sair de um desses lugares escoltado pela garagem, sem crachá, porque bombas foram jogadas no térreo. E ele (a) ainda tem que pegar o carro no estacionamento, passar pela fileira de defensores da paz que usam coquetel molotov. Não foi de ônibus como de costume porque a via principal, de seis pistas, estava interditada para o exercício do direito à livre manifestação desde a meia-noite. Mas isso também é privilégio de cidade que concentra bandido, na terra dos defensores de bandeira tá tudo legal, ninguém vê seu local de trabalho pegando fogo colocado por gente do bem.
Eu queria, só queria, ver o pessoal que se abate com remoção de invasão, com ataque terrorista no exterior, com demolição de casa com dependentes químicos dentro, com incêndio criminoso na casa do vizinho, com violência a condenado na cadeia, descobrir que Brasília não é feita só dos prédios bonitos do Niemeyer. Gostaria que percebessem que Brasília não é habitada apenas pelos políticos que os votos de todos os brasileiros mandam pra cá. Que essa terra é feita de gente. De gente que pega ônibus lotado às cinco da madrugada para limpar e vigiar os prédios públicos, pra fazer faculdade com bolsa e estagiar no serviço público, conciliando com outro emprego para alimentar os filhos, mirando um futuro melhor. De gente que estudou com muita luta, enquanto outros curtiam a balada e brincavam, passou num concurso sem cartas marcadas e largou sua cidade em busca de trabalho. De gente que vem para ser auxiliar de qualquer coisa e só consegue visitar a família a cada dois anos, porque a passagem é cara e a viagem longa. De moradores dos arredores do maior lixão a céu aberto e da maior favela horizontal da América Latina, que têm na terceirização do serviço público a pequena fonte de renda da família.
Eu queria, só queria, que os cientistas políticos de botequim e leitores de blogs de intelectuais e humoristas recebedores de mesada de partido, que arrotam posts agressivos contra Brasília, pegassem o ônibus, o carro ou o avião, e passassem alguns dias aqui. Que deixassem de pensar que essa cidade é só um quadradinho no mapa ou a Esplanada que aparece no Jornal Nacional (e no Jornal do SBT, pra quem boicota a emissora golpista).
Eu queria que conhecessem os candangos, os brasilienses, os moradores do entorno, as pessoas de diferentes sotaques e culturas que se identificam e se tornam vizinhos/colegas de trabalho irmãos, numa cidade que muitos chamam de fria.
Eu queria que estudassem a história dessa região que foi e continua sendo a promessa de uma vida melhor pra tanta gente, e a vissem como um aglomerado de pessoas boas, como enxergam seus conterrâneos e prezam pela sua cidade.
Na minha cidade, tive a oportunidade de trabalhar em agência bancária invadida por baderneiros ignorantes e destruidores, que não enxergavam que nós, atendentes que eles agrediam, éramos tão trabalhadores como eles. Doeu ver o que destruíram. Eu devo ter sonhado, porque essas coisas não acontecem fora do quadradinho planejado, é difícil pros outros imaginarem.
Mas... é Brasília, né. Aqui, o livre direito à manifestação pode colocar os outros em risco, pode impedir o exercício do direito de ir e vir, pode virar violência que inspira quadrinhos e memes pro resto do país se divertir, e textões criticando manchetes que usam vândalos em vez de manifestantes.
Cansada disso tudo, e eu também gostaria que nosso governante fosse outro. Há limites em qualquer lugar, sempre.
25 de maio de 2017
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