quarta-feira, 16 de abril de 2014

A nuvem de cachorros

 O homem grisalho senta-se na frente da moça. Gesticula bastante e esbraveja que o banco roubou todo o seu dinheiro, aquele papel em branco amassado é a prova do crime. A bancária tem a obrigação de devolver sua fortuna.
_Senhor, não há no sistema nenhuma conta em nome de Presivaldo Mintras.
Fúria, fúria, fúria... chuvisco de cuspe e papel jogado na mesa.
_Dona, meu filho foi assassinado pelo meu irmão, um cachorro está atrás de mim e até rasgou a minha camisa, olha só! E o que o banco vai fazer, nada?
Gláucia não encontra estragos na blusa xadrez. Para livrar-se da situação e dar andamento na fila, tem a brilhante solução:
_Seu Presivaldo, vou anotar os dados para averiguar o ocorrido, volte daqui uma semana, por favor.
Sete dias se passam e, para a surpresa de todos, lá está o homem no canto da agência. Cobra a resposta para o roubo de seu tesouro e não aceita as explicações da funcionária. A cada negativa, fica mais nervoso e amaldiçoa:
_Dona, se a senhora não me ajudar a recuperar minha fortuna, o cachorro vai te pegar! Eu não vou embora! Olha a nuvem, olha nuvem aí em cima.
_Tudo bem, seu Presivaldo, eu sei que o senhor tem razão. Mas vamos fazer o seguinte, leve o telefone do banco anotado e, para evitar se deslocar à toa, ligue para saber sobre o andamento do processo.
O homem vai embora satisfeito, e Gláucia acredita ter resolvido o problema de vez. Doce ilusão! Que ideia de jerico, agora começa a perseguição...
Dia após dia, seu Presivaldo azucrina a telefonista, que já passa a ligação diretamente para quem, quem? Gláucia, a funcionária premiada com os casos de comunicação truncada.
Berros insistentes do outro lado da linha, tentativas frustradas de diálogo com a ‘vítima’, novas ameaças de ataques caninos. Gláucia põe o telefone na mesa para atender os outros clientes e, quando o coloca de volta no ouvido, ainda persiste a ladainha. Depois de algumas promessas de ajuda, ele encerra ligação, repetindo o alerta:
_A senhora está vendo essa nuvem preta em cima da sua cabeça? É tudo cachorro, é tudo cachorro! Ele vai cair e vai te comer, cuidado! É tudo cachorro, é tudo cachorro!
Semanas de telefonemas depois, o homem transtornado, suando em bicas, visita a agência e faz sua última declaração:
_Aquele cachorro mordeu a perna do meu filho no poste. Sabe dona, a senhora não resolveu meu problema, então eu vou embora. Mas olha bem pra mim, olha bem... (puxando a camisa). Se a senhora achar algum cachorro usando minha roupa por aí, é porque ele me comeu!   
Gláucia nunca mais teve notícia do pobre senhor, de quem ocasionalmente se lembra ao avistar um cão. Por sorte, jamais encontrou um animalzinho vestindo aquela calça surrada e a camisa quadriculada.  


Simplicidade presumida

    Nanci sempre estufou o peito ao dizer que era pouco vaidosa. Em casa, no trabalho ou nas festas, o visual era praticamente o mesmo. Simples.
   Batom discreto, vez ou outra lápis para olhos ou delineador, raramente aparava as sobrancelhas. Esmalte nas unhas, apenas para eventos de pompa. Xampu de qualquer marca, secador somente para tirar a umidade, nada de penteado especial; aventurava-se no corte sozinha, comprimentos diversos. Sem compromisso com a moda, para os acessórios nunca deu bola. Alternava sem problemas entre magra e gordinha, o guarda-roupa acompanhava a tendência de quem comia muito ou pouco com consciência.
    Incrivelmente determinada a aceitar-se como Deus a criou, a moça desapegada pouco se afetava pela opinião alheia sobre sua aparência. Ela não entendia o compromisso da maioria com a manicure, a pedicure, a escova, o alisamento, a tintura, a maquiagem, a hidratação, a combinação das peças, a preocupação com a roupa do dia. 
   Até que veio o acaso para abalar as estruturas da crítica e desprendida menina, que considerava tudo perda de tempo e fazia piada da busca pela beleza. Levada a cortar os cabelos, por força das circunstâncias acima do peso, vestimenta fora de estilo, impossibilitada de usar os enfeites que queria, no reflexo uma estranha agonia.
   Para Nanci, aquilo era doído. Não adiantava ouvir que o corte ficou lindo, que o vestido lhe caía bem, que o lenço era um charme, que estava bonita, que nem dava para perceber. O cabelo ia crescer, ela tinha que emagrecer, recusava-se a comprar roupas maiores, responder sobre a echarpe tornou-se fatigante. Nada disso ela havia escolhido.     
   Foi aí que ela percebeu o quanto era presunçosa... Que ilusão, considerar-se abnegada, quando tinha no orgulho de controlar o que a satisfazia no espelho, uma grande vaidade.

sábado, 5 de abril de 2014

Uma história em aberto (o lúdico no desafio em família)

     Quando a mamãe chamou a gente no quarto para explicar os motivos de tanto tempo na frente do computador e ao telefone, e das nossas muitas visitas a médicos e laboratórios, eu entendi tudinho. Era como no Star Wars, os carocinhos estavam atacando a tireoide, e o médico ia ter que abrir para ajudar a acabar com todos eles.
     Claro que eu ouvi algumas conversas e fiquei empolgado quando ela confirmou o que tinha, porque sempre coloco uma moedinha para as crianças com câncer no McDonald´s. Aprendi que todo mundo fica doente e cada um vem com um probleminha pra resolver - eu tenho rinite, meu irmão sinusite, o papai dor nas costas, outros têm dificuldade com as perninhas ou não enxergam bem, e isso é o que veio pra ela.
     Festejamos a formatura da alfabetização e o aniversário, curtimos os priminhos, e logo tudo mudou. Vovó ficou um tempão aqui, e minha tia veio no dia da cirurgia, para ajudar a cuidar de mim. Mamãe voltou do hospital, e todo dia eu perguntava se já ia 'fazer' a cicatriz. Quando vi, parecia um risco de canetinha, que não podia tomar sol.
     Contei que a professora pediu para desenhar o que me deixa mais feliz e triste, e eu fiz a mamãe na cama do hospital, pois é ruim quando ela fica mais de um dia longe. Ela não se importou de eu ter esquecido o que fiz para o que me alegra e, com os olhos marejados, deu um sorriso e disse que o trabalho deve ter ficado muito bonito.
    Dois meses depois, a mamãe precisou ir ao hospital para tomar um remedinho especial, chamado iodo radioativo, que serve para a pessoa ficar curada. Ele é como kriptonita, vem num pacote fechadinho e faz mal pra quem não está doente, então ela precisaria se isolar por alguns dias. Seria legal, eu ficaria na pousada com o papai, uma aventura de meninos.
     Cheguei da escola e a mamãe tinha deixado uma surpresa, a Charada Premiada! Eram potes com uma questão e um recadinho para cada dia que ela não estaria conosco; bastava dar um palpite para ver a resposta e receber o prêmio, quase sempre uma guloseima. O papai filmou tudo pra mamãe ver como foi legal, e eu disse que ela é tão criativa, que até quando vai para o hospital, pensa em coisa divertida. Ah, desenhei uma árvore de presente e pedi para o meu pai imprimir.
     Toda manhã ela ligava, a gente conversava um pouquinho e eu falava "Mamãe, eu tô com muita saudade com você!". Era choro na hora da charada, para falar ao telefone, ao chegar da escola, na hora de dormir. Quando eu caí e machuquei, meu pai me pegou no colo, mas eu só chamava a minha mãe... E ela não estava em casa para ver que o médico costurou minha cabeça e ouvir que eu fui valente, nem chorei.
      Por causa do ataque de uma bactéria, a mamãe retornou ao hospital e nós voltamos logo para casa. Assim que ela pôde receber visitas, eu saí da escola e fui para o hospital; era melhor estar com ela numa sala pequena, sem fazer muito barulho, do que ficar no plantão de estudos e no judô, que eu adoro.
     Entrei e achei tudo meio esquisito; mamãe sentou-se ao meu lado e me encolhi no sofá, olhando de rabo de olho. Logo ela segurou minha mão, disse que eu estava parecendo um tatu, pegou o trim e começou a cortar minhas unhas; daí fui chegando perto, porque com aquilo eu estava acostumado. No segundo dia, pedi para deitar na cama com ela, abracei, suspirei de felicidade e, pronto, começou a disputa e tive que revezar com meus irmãos.
     Perguntei se tinham furado o braço para colocar aquela mangueirinha que leva o remédio, e ela disse que quem tem três filhos é especial e não precisa de agulha. Eles usaram a mesma canetinha mágica que eu tenho para medir o açúcar do sangue, e aquele vermelho era uma tinta colorida, para mostrar se estava funcionando. A enfermeira entrou e eu vi que era verdade, a seringa com soro encaixou igual ao Lego!
      Eu apertava o botão da cama que o Batman tinha deixado e comia a janta que o papai comprava lá no quarto mesmo. Era uma delícia saborear o pão com manteiga do lanche da noite, a gelatina, o iogurte e o biscoito que a copeira levava pra mim. Na hora de ir embora, eu ficava triste e chorava, porque a mamãe não podia ficar sozinha...
     Quando fomos almoçar no restaurante ao lado do hospital, o papai falou para eu olhar lá em cima, na passarela de vidro, e contar até cem; as moças da fila cochichavam que aquilo era um absurdo. Logo a mamãe apareceu e acenou, e eu gritei, contente, tão alto que ela conseguiu ouvir. Foram apenas dois minutinhos, mas ela viu que eu usava, para o dia do brinquedo, a luva de médico que ela deu. Ela não entendeu por que aquelas mulheres acenavam, e depois o papai explicou que elas ficaram comovidas.
      No sábado, a mamãe foi para casa com a gente, só que ainda não tinha sarado e não podia fazer muita coisa. Contrariando suas expectativas, o primeiro destino foi o salão de beleza... Também, pudera, eu sabia que o papai não é tão bom cabeleireiro assim! Ela disse que ele cortou seus cabelos numa emergência, para facilitar nos cuidados, e fiquei tranquilo quando ouvi que ia crescer de novo, porque eu acho comprido mais bonito.
      Quando mamãe veio me dar o abraço e o beijo de bom dia, eu não deixei e agarrei a perna do meu pai, espantado. Ela falou que entendia e explicou que o cabelo estava diferente e a faixa no pescoço ficaria por um tempo, mas ela era a mesma. Na visão dela, não era daquela mãe que eu sentia saudade, mas em cerca de trinta minutos eu me aproximei e ganhei um abraço gostoso.
      Durante quinze dias, foi um bombardeio: "Quanto tempo vai demorar para sarar o seu pescoço?; Tem alguém com mão de robô na sua família?; Eu quero que você me ajude, não quero que você fique doente! Por que você não sara?"
        No restaurante, a mamãe deu as razões de usar o cachecol por cima da faixa, e eu concluí que era para as crianças não se assustarem, pensando que ela era a mulher do Frankenstein! Sabe, aquela que tem um corte no pescoço assim... Ela concordou e riu, porque tinha lembrado somente do Pepe Legal e da Penélope Charmosa.
      Engraçado, uma vez eu pedi uma babá, já que meus amigos tinham, e a mamãe disse que não precisava, porque ela ficava comigo. De repente, ela estava em casa, mas era a ajudante quem cuidava de mim. E quando a Maria me acompanhou até a quadra, eu fiz questão de dizer para as pessoas que aquela não era minha mãe; eu vibro quando ela falta, porque tenho muita vergonha.
       Assim que a mamãe contou que teria que fazer uma nova cirurgia, eu caí num choro profundo... Mas quer saber, foram dois dias muito legais, o melhor fim de semana da minha vida! As amigas dela se uniram no auxílio à nossa família e eu me diverti muito, brinquei nas casas dos meus amigos e na área de lazer, fui ao zoológico, ao parquinho e ao shopping. Quem disse que eu queria ir embora quando o papai chegava? Nem a mamãe eu quis visitar!
      Quando ela voltou, fiquei decepcionado, porque achei que já estaria boa. A alegria foi grande quando trocou o curativo e ficou igual ao da outra vez, e vibrei no dia em que não vi mais o micropore, só a cicatriz. 
      Como nossa vida ficou diferente e a mamãe está mais quieta, séria e brava, ela veio esclarecer a situação. Conversamos um pouquinho e eu, sempre esperto, saquei que ela está doida por causa dos remédios, por isso fica achando que é o Hulk.
      Na minha pesquisa diária, fui me certificar com o papai se fazer espada do Star Wars não era perigoso pra mamãe. E fiz uma proposta, já que ela podia mexer com as mãos, eu poderia ajudá-la a preparar os sabres de luz que eu tanto queria. Foi um domingo muito legal.
        Nós guardamos os planos para quando ela estiver boa de vez, sou bastante criativo e há muito o que não conseguimos fazer juntos. A rotina está se ajeitando lentamente, e a cada coisa que ela faz por mim, eu corro radiante e grito para os meus irmãos que a mamãe está melhorando. Ainda é um pouco difícil e tenho que tirar muitas dúvidas da minha cabecinha, por isso hoje perguntei assustado se a pediatra tinha achado algum caroço em mim. A mamãe garantiu que isso não aparece em crianças, só em mulher mais velha, e eu sorri aliviado, não preciso me preocupar com isso.
     


*Texto baseado nos comentários de três pimpolhos valentes e nas respostas para amenizar a realidade imprevista. Com criança o desafio é grande, mas o bálsamo da diversão é garantido.



Escrevo porque preciso

Escrever é uma necessidade...  O pensamento chega, o texto se ajusta de forma meteórica e necessita ser externado. Um process...